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Ana Luiza Braga, Bertany Pascoal, Rodrigo Rodrigues

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Aterro Sanitário do Oeste de Caucaia fica a aproximadamente 17 km de distância de Fortaleza, na Região Metropolitana. Pouco antes de dobrarmos na “rua do aterro”, ficou clara a surpresa: havia chovido lá pouco antes. Se a famosa poeira  tinha dado uma trégua, a lama e a estrada enganosa deram o ar da graça. A rua é uma reta longa e, logo na entrada, nosso carro começou a dividir o curto espaço do asfalto com os caminhões de lixo. Pra quem não é acostumado, assusta: não se passa mais de 1 minuto sem dar de frente com um deles. A lama, os buracos, os caminhões, e também criações bovinas - que às vezes cortavam os asfalto castigado - dividiam a nossa atenção e cuidado durante o trajeto. Em momentos, a rua parecia infinita. Quanto mais entrávamos no caminho, mais o cheiro ia ficando forte, sempre presente, quase algo sólido.


 

Era essa rua, e esse cenário, que abrigava nossos protagonistas: os moradores da comunidade chamada “Carrapicho”. Estávamos prestes a pôr em cheque grande parte do que compunha nosso imaginário sobre como se sente alguém que mora perto de um aterro sanitário, e em uma rua onde não se passa um minuto sem dar de cara com um caminhão de lixo. Mas claro que nada é “preto no branco”; a realidade sempre traz suas eternas contradições. Houve quem disse que adora o lugar, e houve quem afirma que não gosta do lugar e só vive lá por não ter pra onde ir. Se fomos à rua do aterro com dúvidas, de lá saímos cheios de perguntas.

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

No caminho, enquanto seguíamos a estrada, uma placa, disputada por galhos e folhas, avisava: o aterro velho é logo a seguir, e o novo, fica virando à direita, lá na frente.

 

Seguimos em frente, já éramos visitantes esperados.

Placa direciona a aterros
Sr. Chagas.png
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Seu Chagas

Francisco das Chagas Silva, 68, piauiense, conhecido como Seu Chagas, mora em uma das últimas casas antes da entrada do Aterro Municipal do Oeste de Caucaia, o ASMOC, na comunidade de Carrapicho. Ele, ao contrário de muitos que seguem o caminho oposto ao lixo, chegou à comunidade após a desativação do lixão do Jangurussu, quando o lixo de Fortaleza passou a ser encaminhado à cidade vizinha, Caucaia. Vindo com o movimento de comerciantes, catadores e motoristas de caminhões, seu Chagas ficou. Hoje, sentado em uma cadeira de madeira no fundo do quintal da casa de muros baixos, ele pinça na memória os momentos da trajetória que o trouxeram até aqui. Agora, aposentado, ele revela a fórmula para uma vida saudável:

 

— Hoje eu fui no posto: pressão 12 por 8, glicose 89, não tenho diabetes.

— Qual o segredo? — indagamos.

— Viver bem.

 

Morando há aproximadamente 20 anos na “Estrada do Aterro”, Seu Chagas gosta da segurança que a localidade, distante aproximadamente 17 km da capital cearense, Fortaleza, parece emanar.

 

— Aqui é muito calmo, tranquilo, não tem aquele perigo e violência, aquele mundo de terror, aqui não tem. Tudo que se deixa fora, anoitece e amanhece. Uma tranquilidade - afirma.

 

Do lado de fora da casa de Seu Chagas, a movimentação de veículos é constante. Na via transitam cerca de mil caminhões transportadores de lixo por dia - conforme Gemmelle dos Santos,  doutor em Saneamento Ambiental pela Universidade Federal do Ceará e professor em Química e Meio Ambiente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Ceará IFCE - fato que não parece incomodar o senhor de 68 anos.

 

— Acostuma. Faz de conta que não existe. É igual àquelas avenidas das grandes cidades, aquele movimento de veículo num é intenso 24hrs também? E todo mundo vive bem?

 

O barulho pode ser como os das metrópoles, mas a vida é como no interior. Mesmo perto das 15 horas, a sombra no quintal de Seu Chagas revela: naquela terra o que se planta, dá frutos. Os cuidados com o quintal fazem parte da rotina e Chagas fala sobre os frutos que já colheu:

 

— Milho, feijão, melancia, tudo que dava aí. Esse cacho [de banana] aqui eu tirei do pé hoje mais cedo — diz apontando orgulhosamente para as bananas ainda verdes.

Mas nem tudo são flores - ou frutos - na vida em Carrapicho. O idoso, que para fazer compras, ir ao posto de saúde e comprar remédios precisa locomover-se até os bairros vizinhos da cidade de Caucaia, como Toco ou Metrópole, reclama da falta de linhas de transporte coletivo que atendam aos moradores da região.

 

— Falta de ônibus*, pras pessoas se ‘deslocar’. Porque aqui nós temos água, luz, telefone, internet... Agora a única carência daqui é ônibus para o povo; porque nem sempre a gente pode andar de carro.

 

Sobre a vida próximo ao ASMOC, ele afirma com a tranquilidade que só o tempo traz:

 

— Dá pra conciliar o lixão [sic] aí, os carros, e todo mundo vive. Cada um no seu lugar, né? Os carros na pista, o lixão [sic] lá no terreno dele lá, e nós se [sic] movimentando.

“Trazendo todo o movimento”

 

Seu Chagas nem sempre viveu em Carrapicho. Vindo da cidade de Cocal, no estado do Piauí, sua primeira casa ficava nos arredores do antigo lixão do Jangurussu, em Fortaleza. Os detalhes sobre a vida lá parecem exigir esforço da memória do aposentado, afinal, já se passam mais de duas décadas da chegada à Caucaia.

 

 

 

Ele conta que no estado vizinho trabalhava como técnico em rádio, fazia consertos em peças de radiodifusão. Aos vinte e poucos anos - a memória não o permite dizer com certeza - veio a Fortaleza em busca de peças, nos arredores do antigo lixão do Jangurussu, e ficou. Conseguiu um novo emprego em uma companhia de eletricidade e enxergou no comércio de material reciclado a oportunidade de crescer financeiramente. No quintal de casa começou um comércio de reciclagem.

 

— Comprava aquelas peças que vinha pra reciclagem, o alumínio por exemplo, vidro, plástico, metais, qualquer outro tipo de material que aparecia eu comprava. Naquela época era bom. E dava certo  relata.

 

Das rampas de lixo do Jangurussu vinham os materiais que além de gerar renda aos então catadores de lixo, ajudavam seu Chagas a complementar a renda familiar.

 

(áudio: …- É porque eu sempre tive meu emprego, né? Isso era só uma sobrevivência, pra amparar serviço pra outras pessoas...)

 

Em 1998, quando as empresas de coleta de lixo anunciaram que o lixão seria desativado, seu Chagas coincidentemente já possuía um terreno em Caucaia, bem na região onde o aterro sanitário seria instalado.

 

— Acompanhamos. Trazendo todo o movimento.

 

Em Caucaia seguiu com o comércio, mas aos poucos foi abandonando o trabalho na reciclagem e decidiu aposentar-se.

 


 

 

 

 

 

 

*A equipe de reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Caucaia a respeito da falta de ônibus relatada pelos moradores. O órgão informou que a definição das linhas de ônibus é de responsabilidade da Empresa Vitória, companhia responsável pelo transporte coletivo de Caucaia. A Empresa Vitória, por sua vez, informou que o estudo de do local para uma possível implantação de uma linha de transporte coletivo que atenda a comunidade de Carrapicho é de responsabilidade da Secretaria de Transportes do município. Os moradores, portanto, seguem sem previsão de resposta ao problema do transporte coletivo na região no entorno do ASMOC.

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TEVALDO

 

Carrapicho, um tipo de semente comum no Ceará. “Dá em tudo que é canto”, costumam dizer. Acontece que “carrapicho” é, também, uma comunidade localizada no município de Caucaia, onde mora Tevaldo Rocha de Almeida, 71 - o seu Tevaldo. Nome incomum? No mínimo, curioso. Mas, como um bom nome tem em sua origem uma história também curiosa, é preciso uma breve visita ao tempo.

Na época em que os moradores começaram a habitar o terreno, duas famílias dividiam o controle da terra: “a família dos Matias”, e a “família dos Rocha”. A segunda, família do seu Tevaldo. Os dois clãs exerciam o controle da terra e, com isso, eram os responsáveis por nominar o local.

Para alimentar, então, o nome da família foi adotada uma estratégia simples. Criaram-se as fazendas do Carrapicho e a de Campo Grande. A segunda ficou do outro lado da rua, já a primeira, permanece presa na memória dos moradores, mesmo que estes só conheçam o nome “Carrapicho”.

 

— Isso é por causa de briga? Tinha briga entre as duas famílias?

 

— Não, era porque cada um tinha sua propriedade e não era pequena, era uma propriedade até mais ou menos, por isso tinha esses nomes. Campo Grande dos Rocha, Carrapicho dos Matias. E até hoje deram o nome Carrapicho, porque o loteamento foi feito no Carrapicho, mas também no Campo Grande. Mas aí devido ter vindo o aterro pra cá, o pessoal se acomoda mais. Aqui deram o nome Carrapicho.

 

Por conta da confusão, uma coisa chama atenção: a rua não tem CEP! Algo que a modernidade deixou distante, mas que existe. No fundo, como fomos descobrindo, dar-se um jeito para cumprir os compromissos com o estado (pagar a conta de luz, “pegar o papel da água”...).

O GANSO  (COLOCAR O ÍCONE DE UM GANSO E PUXAR O TEXTINHO)

 

Como estranhos chegam de surpresa para perguntar sobre a história de alguém (ou de algo), são recebidos com um sorriso e uma bicada de um ganso? Parece não importar. Chegamos por volta das 15 horas no sítio de seu Tevaldo. Lá, encontramos o portão aberto e um sorriso estampado como de quem espera que a primeira pessoa presente puxe conversa.

 

Nos aproximamos, na tentativa de conseguir alguma informação básica e realizar as devidas apresentações. No início, o chão deslizante fazia com que caminhássemos com cuidado. Após a peleja inicial, seu Tevaldo nos recebeu com seu típico sorriso. Pareceu-nos reconfortante encontrar alguém tão disposto a conversar e dividir conosco particularidades de se morar ali, perto de um aterro sanitário. 

 

Foi quando veio a surpresa e matéria de boas risadas (depois, é claro). Perto do homem alguns gansos se alimentavam. Um, em especial, se mostrava mais disposto a proteger o velho Tevaldo… Não sabíamos, no entanto, que se tratava de um guarda tão empenhado. Ao nos aproximar do homem, o ganso, chamado Bidu - depois ficamos sabendo -, partiu para nos atacar. 

A bicada veio como forma de defesa? Para proteger seu Tevaldo sei lá do quê? Não sabemos… Restou que Bidu fosse preso na capota de um carro enquanto realizávamos a entrevista.

Enquanto isso, o homem e Bidu - o ganso - se aninhavam na sombra da árvore. O mais velho destes batia firmemente com um martelo. O trabalho cotidiano estava montado, mas o barulho dos caminhões na estrada ainda podiam ser ouvidos nas mediações do terreno de seu Tevaldo. “Cinco e meia da manhã já me levanto”, contava ele. E nós? Paramos para ouvir…

“Eu tinha vontade de fazer o que hoje eu faço.”

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DONA MARIA

Fomos até o fim  da “Rua do aterro”. Vizinho ao portão de entrada, uma casa nos chamou a atenção. Dois homens, em curto descanso, esperavam a saída de seus caminhões para seguirem trabalho. Perguntados sobre quem morava lá, foram curtos e assertivos, Dona Maria mora aí, é só chamar.

 

Duas palmas e ela apareceu, com uma touca e um sorriso. Pega de surpresa, desculpou-se por não estar mais arrumada, "Eu tô meio assim suada... num tava esperando ninguém, né?". Na verdade ela não demonstrou nenhum estranhamento, e de tão à vontade na entrevista, fez a gente se sentir em casa.

 

Maria de Fátima Rocha tem 58 anos, é mãe de 6 homens e 2 mulheres, e mora nas redondezas desde de que nasceu. Seu pai é dono das terras que lhe rodeia. Ao casar, seu pai deu-lhe uma casa para morar, casa essa de onde ela nos fala.

 

— Depois que eu me casei vim pra cá. Sou divorciada há 35 anos. O terreno de meu pai sao 17 hectares de terra, eu moro no que é dele, e a rampa [sic] tá com o quê... tá com 35 anos que começou essa rampa aqui.

 

 

A mulher confessa que não gosta do lugar:

 

— Eu vou morar onde, meu senhor? Vou morar onde? Eu não tenho condições de comprar uma casa, num tenho condições de levar meus filhos pro médico, eu num posso ir pro médico todo dia pra ir me tratar. Eeu aguento por aqui mesmo. 

 

O primeiro motivo é o barulho de carro, o segundo, ela afirma, fez mal a saúde: a poeira. Ela diz que um médico afirmou que sua visão está ficando ruim devido a forte exposição a toda aquela eterna poeira, "Meus olhos tudo ardendo, parece que tem é areia dentro dos meus olhos". 

 

Segundo ela, a noite é o mesmo sistema: poeira, e "zoada de carro". Nunca pára. Ela diz que no tempo que Caucaia tomava de conta do Aterro, era fechado no sábado e abria de novo na Segunda, o que mudou depois que a Ecofor começou a gerenciá-lo. 

 

A falta de transporte público também é grande problema para Maria. Assim como outros moradores de Carrapicho, ela se desloca até uma comunidade próxima, chamada Toco, a pé, para conseguir atendimento médico. Os filhos também são prejudicados pela falta de ônibus.

Ela nos conta, com a voz apressada, que a entrada no aterro é mais que restrita. 

 

— Às vezes filmam por aqui, daqui mesmo, mas não entra não. Aqui não entra reportagem, num entra ambulância, num entra nada nada. 

 

Na sua casa, Maria vende café, caldos e canja. É daí que ela tira o sustento. Abre às 8:00 da manhã, e os trabalhadores dos caminhões começam a aparecer. No início da nossa entrevista, um homem apareceu pra comprar bolo, mas a comerciante respondeu que, naquela hora, com o fim da tarde próximo, já tinha vendido tudo. 

 

— Só vivo disso mesmo. E criando meus filhos com isso aqui tudinho. Porque os pais deles nunca deram um bombom a eles. Nunca deram nada a meus filhos. Criei eles tudinho com essa arrumação. Cortando olho de palha, enfiando tucume, fazendo carvão, trabalhando nas casas dos outros, aí quando começou essa rampa comecei a vender esse cafezinho.

 

Maria nos conta que a proximidade com o ASMOC deixou a terra, que ela afirma ser de seu pai, inabitável. 


— Foi a rampa que acabou. Botando chorume, urubu, tudo se acabou. Nós mora nesse pontinho aqui, porque nós não pode mais morar mais pra lá, porque não aguenta. Tudo podre.

Vizinho a casa de Maria há um riacho e, ao lembrar da infância, ela traz as diferenças causadas pela chegada do aterro sanitário: 

 

— Ali nós tomava banho, a mãe lavava a roupa, nós brincava, agora não tem mais não. Tem a pedra grande ali, nós subia ela e pulava dentro do riacho. era muito bom. Mas agora não pode mais não. 

— Por quê? — Perguntamos.

— Porque é só chorume a água do riacho, é tudo podre. Se tocar as mãos é perigoso cair até os dedos. É tudo chorume do lixo. 

A moradora afirma que as águas do riacho que fica na comunidade próxima ao ASMOC estão poluídas. 

— Já denunciaram, já veio fiscalização. Aí vem aí, um leva água pra fazer análise, se acaba em nada. Ali você não pode mais criar um animal pra beber uma água, você não pode mais passar ali, você não pode mais nada. 

 

Quanto mais Maria falava, parecia que mais coisas ela tinha a dizer. A senhora afirma diz que já recebeu reclamações do "pessoal de dentro". A moradora sabe da gravidade das críticas, entretanto, não deixa de fazer queixas sobre a vida em Carrapicho. Durante a nossa conversa, ela teve breve um sobressalto na expressão ao perceber a aproximação de um funcionário vindo do ASMOC.

Ana Luiza Braga, Bertany Pascoal, Rodrigo Rodrigues

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Aterro Sanitário do Oeste de Caucaia fica a aproximadamente 17 km de distância de Fortaleza, na Região Metropolitana. Pouco antes de dobrarmos na “rua do aterro”, ficou clara a surpresa: havia chovido lá pouco antes. Se a famosa poeira  tinha dado uma trégua, a lama e a estrada enganosa deram o ar da graça. A rua é uma reta longa e, logo na entrada, nosso carro começou a dividir o curto espaço do asfalto com os caminhões de lixo. Pra quem não é acostumado, assusta: não se passa mais de 1 minuto sem dar de frente com um deles. A lama, os buracos, os caminhões, e também criações bovinas - que às vezes cortavam os asfalto castigado - dividiam a nossa atenção e cuidado durante o trajeto. Em momentos, a rua parecia infinita. Quanto mais entrávamos no caminho, mais o cheiro ia ficando forte, sempre presente, quase algo sólido.


 

Era essa rua, e esse cenário, que abrigava nossos protagonistas: os moradores da comunidade chamada “Carrapicho”. Estávamos prestes a pôr em cheque grande parte do que compunha nosso imaginário sobre como se sente alguém que mora perto de um aterro sanitário, e em uma rua onde não se passa um minuto sem dar de cara com um caminhão de lixo. Mas claro que nada é “preto no branco”; a realidade sempre traz suas eternas contradições. Houve quem disse que adora o lugar, e houve quem afirma que não gosta do lugar e só vive lá por não ter pra onde ir. Se fomos à rua do aterro com dúvidas, de lá saímos cheios de perguntas.

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

No caminho, enquanto seguíamos a estrada, uma placa, disputada por galhos e folhas, avisava: o aterro velho é logo a seguir, e o novo, fica virando à direita, lá na frente.

 

Seguimos em frente, já éramos visitantes esperados.

Placa direciona a aterros
Sr. Chagas.png
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Seu Chagas

Francisco das Chagas Silva, 68, piauiense, conhecido como Seu Chagas, mora em uma das últimas casas antes da entrada do Aterro Municipal do Oeste de Caucaia, o ASMOC, na comunidade de Carrapicho. Ele, ao contrário de muitos que seguem o caminho oposto ao lixo, chegou à comunidade após a desativação do lixão do Jangurussu, quando o lixo de Fortaleza passou a ser encaminhado à cidade vizinha, Caucaia. Vindo com o movimento de comerciantes, catadores e motoristas de caminhões, seu Chagas ficou. Hoje, sentado em uma cadeira de madeira no fundo do quintal da casa de muros baixos, ele pinça na memória os momentos da trajetória que o trouxeram até aqui. Agora, aposentado, ele revela a fórmula para uma vida saudável:

 

— Hoje eu fui no posto: pressão 12 por 8, glicose 89, não tenho diabetes.

— Qual o segredo? — indagamos.

— Viver bem.

 

Morando há aproximadamente 20 anos na “Estrada do Aterro”, Seu Chagas gosta da segurança que a localidade, distante aproximadamente 17 km da capital cearense, Fortaleza, parece emanar.

 

— Aqui é muito calmo, tranquilo, não tem aquele perigo e violência, aquele mundo de terror, aqui não tem. Tudo que se deixa fora, anoitece e amanhece. Uma tranquilidade - afirma.

 

Do lado de fora da casa de Seu Chagas, a movimentação de veículos é constante. Na via transitam cerca de mil caminhões transportadores de lixo por dia - conforme Gemmelle dos Santos,  doutor em Saneamento Ambiental pela Universidade Federal do Ceará e professor em Química e Meio Ambiente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Ceará IFCE - fato que não parece incomodar o senhor de 68 anos.

 

— Acostuma. Faz de conta que não existe. É igual àquelas avenidas das grandes cidades, aquele movimento de veículo num é intenso 24hrs também? E todo mundo vive bem?

 

O barulho pode ser como os das metrópoles, mas a vida é como no interior. Mesmo perto das 15 horas, a sombra no quintal de Seu Chagas revela: naquela terra o que se planta, dá frutos. Os cuidados com o quintal fazem parte da rotina e Chagas fala sobre os frutos que já colheu:

 

— Milho, feijão, melancia, tudo que dava aí. Esse cacho [de banana] aqui eu tirei do pé hoje mais cedo — diz apontando orgulhosamente para as bananas ainda verdes.

Mas nem tudo são flores - ou frutos - na vida em Carrapicho. O idoso, que para fazer compras, ir ao posto de saúde e comprar remédios precisa locomover-se até os bairros vizinhos da cidade de Caucaia, como Toco ou Metrópole, reclama da falta de linhas de transporte coletivo que atendam aos moradores da região.

 

— Falta de ônibus*, pras pessoas se ‘deslocar’. Porque aqui nós temos água, luz, telefone, internet... Agora a única carência daqui é ônibus para o povo; porque nem sempre a gente pode andar de carro.

 

Sobre a vida próximo ao ASMOC, ele afirma com a tranquilidade que só o tempo traz:

 

— Dá pra conciliar o lixão [sic] aí, os carros, e todo mundo vive. Cada um no seu lugar, né? Os carros na pista, o lixão [sic] lá no terreno dele lá, e nós se [sic] movimentando.

“Trazendo todo o movimento”

 

Seu Chagas nem sempre viveu em Carrapicho. Vindo da cidade de Cocal, no estado do Piauí, sua primeira casa ficava nos arredores do antigo lixão do Jangurussu, em Fortaleza. Os detalhes sobre a vida lá parecem exigir esforço da memória do aposentado, afinal, já se passam mais de duas décadas da chegada à Caucaia.

 

 

 

Ele conta que no estado vizinho trabalhava como técnico em rádio, fazia consertos em peças de radiodifusão. Aos vinte e poucos anos - a memória não o permite dizer com certeza - veio a Fortaleza em busca de peças, nos arredores do antigo lixão do Jangurussu, e ficou. Conseguiu um novo emprego em uma companhia de eletricidade e enxergou no comércio de material reciclado a oportunidade de crescer financeiramente. No quintal de casa começou um comércio de reciclagem.

 

— Comprava aquelas peças que vinha pra reciclagem, o alumínio por exemplo, vidro, plástico, metais, qualquer outro tipo de material que aparecia eu comprava. Naquela época era bom. E dava certo  relata.

 

Das rampas de lixo do Jangurussu vinham os materiais que além de gerar renda aos então catadores de lixo, ajudavam seu Chagas a complementar a renda familiar.

 

(áudio: …- É porque eu sempre tive meu emprego, né? Isso era só uma sobrevivência, pra amparar serviço pra outras pessoas...)

 

Em 1998, quando as empresas de coleta de lixo anunciaram que o lixão seria desativado, seu Chagas coincidentemente já possuía um terreno em Caucaia, bem na região onde o aterro sanitário seria instalado.

 

— Acompanhamos. Trazendo todo o movimento.

 

Em Caucaia seguiu com o comércio, mas aos poucos foi abandonando o trabalho na reciclagem e decidiu aposentar-se.

 


 

 

 

 

 

 

*A equipe de reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Caucaia a respeito da falta de ônibus relatada pelos moradores. O órgão informou que a definição das linhas de ônibus é de responsabilidade da Empresa Vitória, companhia responsável pelo transporte coletivo de Caucaia. A Empresa Vitória, por sua vez, informou que o estudo de do local para uma possível implantação de uma linha de transporte coletivo que atenda a comunidade de Carrapicho é de responsabilidade da Secretaria de Transportes do município. Os moradores, portanto, seguem sem previsão de resposta ao problema do transporte coletivo na região no entorno do ASMOC.

Seu Chagas.jpg
Seu Tevaldo.jpg

TEVALDO

 

Carrapicho, um tipo de semente comum no Ceará. “Dá em tudo que é canto”, costumam dizer. Acontece que “carrapicho” é, também, uma comunidade localizada no município de Caucaia, onde mora Tevaldo Rocha de Almeida, 71 - o seu Tevaldo. Nome incomum? No mínimo, curioso. Mas, como um bom nome tem em sua origem uma história também curiosa, é preciso uma breve visita ao tempo.

Na época em que os moradores começaram a habitar o terreno, duas famílias dividiam o controle da terra: “a família dos Matias”, e a “família dos Rocha”. A segunda, família do seu Tevaldo. Os dois clãs exerciam o controle da terra e, com isso, eram os responsáveis por nominar o local.

Para alimentar, então, o nome da família foi adotada uma estratégia simples. Criaram-se as fazendas do Carrapicho e a de Campo Grande. A segunda ficou do outro lado da rua, já a primeira, permanece presa na memória dos moradores, mesmo que estes só conheçam o nome “Carrapicho”.

 

— Isso é por causa de briga? Tinha briga entre as duas famílias?

 

— Não, era porque cada um tinha sua propriedade e não era pequena, era uma propriedade até mais ou menos, por isso tinha esses nomes. Campo Grande dos Rocha, Carrapicho dos Matias. E até hoje deram o nome Carrapicho, porque o loteamento foi feito no Carrapicho, mas também no Campo Grande. Mas aí devido ter vindo o aterro pra cá, o pessoal se acomoda mais. Aqui deram o nome Carrapicho.

 

Por conta da confusão, uma coisa chama atenção: a rua não tem CEP! Algo que a modernidade deixou distante, mas que existe. No fundo, como fomos descobrindo, dar-se um jeito para cumprir os compromissos com o estado (pagar a conta de luz, “pegar o papel da água”...).

O GANSO  (COLOCAR O ÍCONE DE UM GANSO E PUXAR O TEXTINHO)

 

Como estranhos chegam de surpresa para perguntar sobre a história de alguém (ou de algo), são recebidos com um sorriso e uma bicada de um ganso? Parece não importar. Chegamos por volta das 15 horas no sítio de seu Tevaldo. Lá, encontramos o portão aberto e um sorriso estampado como de quem espera que a primeira pessoa presente puxe conversa.

 

Nos aproximamos, na tentativa de conseguir alguma informação básica e realizar as devidas apresentações. No início, o chão deslizante fazia com que caminhássemos com cuidado. Após a peleja inicial, seu Tevaldo nos recebeu com seu típico sorriso. Pareceu-nos reconfortante encontrar alguém tão disposto a conversar e dividir conosco particularidades de se morar ali, perto de um aterro sanitário. 

 

Foi quando veio a surpresa e matéria de boas risadas (depois, é claro). Perto do homem alguns gansos se alimentavam. Um, em especial, se mostrava mais disposto a proteger o velho Tevaldo… Não sabíamos, no entanto, que se tratava de um guarda tão empenhado. Ao nos aproximar do homem, o ganso, chamado Bidu - depois ficamos sabendo -, partiu para nos atacar. 

A bicada veio como forma de defesa? Para proteger seu Tevaldo sei lá do quê? Não sabemos… Restou que Bidu fosse preso na capota de um carro enquanto realizávamos a entrevista.

Enquanto isso, o homem e Bidu - o ganso - se aninhavam na sombra da árvore. O mais velho destes batia firmemente com um martelo. O trabalho cotidiano estava montado, mas o barulho dos caminhões na estrada ainda podiam ser ouvidos nas mediações do terreno de seu Tevaldo. “Cinco e meia da manhã já me levanto”, contava ele. E nós? Paramos para ouvir…

“Eu tinha vontade de fazer o que hoje eu faço.”

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DONA MARIA

Fomos até o fim  da “Rua do aterro”. Vizinho ao portão de entrada, uma casa nos chamou a atenção. Dois homens, em curto descanso, esperavam a saída de seus caminhões para seguirem trabalho. Perguntados sobre quem morava lá, foram curtos e assertivos, Dona Maria mora aí, é só chamar.

 

Duas palmas e ela apareceu, com uma touca e um sorriso. Pega de surpresa, desculpou-se por não estar mais arrumada, "Eu tô meio assim suada... num tava esperando ninguém, né?". Na verdade ela não demonstrou nenhum estranhamento, e de tão à vontade na entrevista, fez a gente se sentir em casa.

 

Maria de Fátima Rocha tem 58 anos, é mãe de 6 homens e 2 mulheres, e mora nas redondezas desde de que nasceu. Seu pai é dono das terras que lhe rodeia. Ao casar, seu pai deu-lhe uma casa para morar, casa essa de onde ela nos fala.

 

— Depois que eu me casei vim pra cá. Sou divorciada há 35 anos. O terreno de meu pai sao 17 hectares de terra, eu moro no que é dele, e a rampa [sic] tá com o quê... tá com 35 anos que começou essa rampa aqui.

 

 

A mulher confessa que não gosta do lugar:

 

— Eu vou morar onde, meu senhor? Vou morar onde? Eu não tenho condições de comprar uma casa, num tenho condições de levar meus filhos pro médico, eu num posso ir pro médico todo dia pra ir me tratar. Eeu aguento por aqui mesmo. 

 

O primeiro motivo é o barulho de carro, o segundo, ela afirma, fez mal a saúde: a poeira. Ela diz que um médico afirmou que sua visão está ficando ruim devido a forte exposição a toda aquela eterna poeira, "Meus olhos tudo ardendo, parece que tem é areia dentro dos meus olhos". 

 

Segundo ela, a noite é o mesmo sistema: poeira, e "zoada de carro". Nunca pára. Ela diz que no tempo que Caucaia tomava de conta do Aterro, era fechado no sábado e abria de novo na Segunda, o que mudou depois que a Ecofor começou a gerenciá-lo. 

 

A falta de transporte público também é grande problema para Maria. Assim como outros moradores de Carrapicho, ela se desloca até uma comunidade próxima, chamada Toco, a pé, para conseguir atendimento médico. Os filhos também são prejudicados pela falta de ônibus.

Ela nos conta, com a voz apressada, que a entrada no aterro é mais que restrita. 

 

— Às vezes filmam por aqui, daqui mesmo, mas não entra não. Aqui não entra reportagem, num entra ambulância, num entra nada nada. 

 

Na sua casa, Maria vende café, caldos e canja. É daí que ela tira o sustento. Abre às 8:00 da manhã, e os trabalhadores dos caminhões começam a aparecer. No início da nossa entrevista, um homem apareceu pra comprar bolo, mas a comerciante respondeu que, naquela hora, com o fim da tarde próximo, já tinha vendido tudo. 

 

— Só vivo disso mesmo. E criando meus filhos com isso aqui tudinho. Porque os pais deles nunca deram um bombom a eles. Nunca deram nada a meus filhos. Criei eles tudinho com essa arrumação. Cortando olho de palha, enfiando tucume, fazendo carvão, trabalhando nas casas dos outros, aí quando começou essa rampa comecei a vender esse cafezinho.

 

Maria nos conta que a proximidade com o ASMOC deixou a terra, que ela afirma ser de seu pai, inabitável. 


— Foi a rampa que acabou. Botando chorume, urubu, tudo se acabou. Nós mora nesse pontinho aqui, porque nós não pode mais morar mais pra lá, porque não aguenta. Tudo podre.

Vizinho a casa de Maria há um riacho e, ao lembrar da infância, ela traz as diferenças causadas pela chegada do aterro sanitário: 

 

— Ali nós tomava banho, a mãe lavava a roupa, nós brincava, agora não tem mais não. Tem a pedra grande ali, nós subia ela e pulava dentro do riacho. era muito bom. Mas agora não pode mais não. 

— Por quê? — Perguntamos.

— Porque é só chorume a água do riacho, é tudo podre. Se tocar as mãos é perigoso cair até os dedos. É tudo chorume do lixo. 

A moradora afirma que as águas do riacho que fica na comunidade próxima ao ASMOC estão poluídas. 

— Já denunciaram, já veio fiscalização. Aí vem aí, um leva água pra fazer análise, se acaba em nada. Ali você não pode mais criar um animal pra beber uma água, você não pode mais passar ali, você não pode mais nada. 

 

Quanto mais Maria falava, parecia que mais coisas ela tinha a dizer. A senhora afirma diz que já recebeu reclamações do "pessoal de dentro". A moradora sabe da gravidade das críticas, entretanto, não deixa de fazer queixas sobre a vida em Carrapicho. Durante a nossa conversa, ela teve breve um sobressalto na expressão ao perceber a aproximação de um funcionário vindo do ASMOC.

NOS CAMINHOS DO ATERRO...

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Maria ainda lida com outras mágoas em relação ao vizinho, o aterro sanitário:

 

— Um tempo aí eu trabalhei 6 anos dentro do aterro , vendendo bolo e café, sabe? Aí eles me pagavam. Eu trabalhava de domingo a domingo, adoeci lá dentro, a minha mão tá inchada... Nunca me deram um real, fui falar... procurar meus direitos, só advogado... já arrumei 3 advogados pra mim, e eu não ganhei não...

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